O Melro

A Primavera finalmente chegou. Aqui é mais serôdia, não respeita as ordens impostas pelo calendário. Começa a desabrochar quando tem a certeza de que as neves ou a geada decidiram não incomodar mais.

Por José Filipe Rodrigues

Naquele lugar no sul da Europa, um dos vários locais do meu nascimento para a poesia das emoções telúricas, de searas e horizontes tatuados no meu universo de boas memórias, já floriram as violetas, os lírios do campo e as papoilas vermelhas começaram a esboçar os últimos passos para acordarem, em quantidade, com um sorriso para o azul do céu dos atentos à alegria das paisagens bonitas.

Aqui já regressaram as rolas, os azulins e os peitos de bronze, chilreando e voando de galho em galho nos ramos dos lilases e das sempre noiva. Os pardais e os melros negros, que não emigraram no Inverno, já se preparam para iniciarem os novos ciclos da continuidade das espécies. As rolas copiam o exemplo.

Os pardais já estão habituados às pessoas, ganharam confiança e não temem a proximidade. O seu grande objectivo é recolher alimentos e irem saboreá-los nos galhos dos arbustos dos quintais. Os melros parecem mais desconfiados. Fogem se no local de alimentação sentirem a aproximação dos humanos. Os azulins e os peitos de bronze não se aproximam, chilreiam à distância, desconfiando das ambiguidades nas emoções dos humanos, e não aceitam alimentos oferecidos, excepto se estes se encontrarem depositados em comedouros recarregáveis com sementes, que os amigos da natureza, tentando povoar de chilreares os seus jardins, penduram em suportes metálicos ou vegetais, nos quintais. As rolas aproximam-se das pessoas que lhes oferecem alimentos, sem receio, um comportamento completamente diferente do que demostram nos países do sul, onde são perseguidas e fuziladas pelos caçadores.

Fui à janela atirar as sobras de pão para a passarada. Rapidamente o quintal ficou povoado de um bando de pardais, um casal de rolas e um melro. O melro foi o primeiro a chegar. Corria de um lado para o outro à procura do melhor pedaço para debicar, sem se decidir. Entretanto chegaram as rolas e os pardais. As rolas encontraram rapidamente os maiores e melhores pedaços e ficaram calmamente e depenicar, deglutindo a oferta. O melro continuava a correr e a saltar de um lado para o outro, indeciso. Os pardais, cada um escolheu o seu pedaço de pão, segurou-o com o bico e levantou voo, com o alimento bem seguro, para o ir debicar instalado num dos telhados das casas mais próximas, num local onde teve a certeza de não aparecerem competidores ou predadores. Quando o melro estava quase a decidir qual seria a sua escolha, o chão estava vazio de pão e as rolas voaram com o papo cheio.

O melro regressou aos rituais de acasalamento com a melra, enquanto a rola começava a construir o ninho, no topo de um bonsai de araucária, com pouco mais de um metro de altura, de ramos pendentes para o solo. Ela acordou o meu espanto quando a vi transportar, segurando com o bico, metade de um copo de esferovite, abandonado no passeio da estrada, de um dos mundialmente conhecidos estabelecimentos comerciais de “fast food”. A metade do copo foi cientificamente instalada entre os ramos do bonsai para servir de base do ninho que começou a tecer.

No dia seguinte, quando o ninho da rola já se encontrava quase pronto, com materiais vegetais adicionados ao desperdício de esferovite, o melro e a melra, num enorme alarido, conseguiram expulsar a rola. A melra ocupou o ninho para a postura dos ovos e encontra-se neste momento a seguir os ensinamentos dos hábitos e rotinas das tradições transmitidas pela mãe natureza, aguardando a chegada dos continuadores da espécie.

Os pardais andam bastante discretos. As fêmeas construíram os ninhos nos Cupressos sempervirens e no Cupressus lusitanica, do outro lado da estrada. Aparecem para se alimentarem, durante curtos intervalos de tempo, e regressam aos ninhos, quase impossíveis de avistar a uma distância relativamente próxima.

O melro continuou, durante mais alguns dias, armado em garanhão. Visitava a fêmea, que está deitada no ninho, mas esta não lhe deu atenção, não lhe satisfez o vício. O melro não desistiu e tentar descobrir mais fêmeas disponíveis para garantirem o aumento da população de descendentes com as suas características genéticas. As outras fêmeas também estão bastante ausentes, tal como a que se instalou no ninho construído pela rola, no topo do bonsai de araucária.

A testosterona continuou a ser bombeada na fisiologia do melro, numa fase em a quantidade já se revelava exageradamente desnecessária. O melro poisava nos parapeitos da janelas, olhava para o vidro e, vendo o seu reflexo, começava a bater com o bico fortemente nas janelas, pensando estar a efectuar um ritual de engate e acasalamento que poderia conduzir à reprodução, sem reparar nos esboços masculinos da imagem que observava.

Os vizinhos vinham à janela para tentar ver quem “batia, batia violentamente e não era chuva nem é vento. Chuva e vento não eram certamente”… Nesse instante o melro fugia ao observar a presença de humanos no interior das casas. O excesso de testosterona inibia-lhe a racionalidade e catalisava apenas comportamentos ditados pelas ordens recebidas do cerebelo. Voava para outras janelas das casas mais próximas e repetia o mesmo ritual patético.

Ontem o melro poisou na vedação do jardim da casa verde, de arame, tecido em losangos perfeitos, encimada com extremidades pontiagudas para evitar a invasão dos gatos, que vagueiam pelas ruas da cidade, e dos esquilos. Olhou em redor e para o céu. Teve a ter a certeza da inexistência próxima de predadores. Olhou em frente e viu a imagem de um macho, com aspecto de competidor nos rituais de acasalamento com as fêmeas. Olhou incisivamente para confirmar não ser uma paranóia ou alucinação. Olhou demoradamente para a imagem que copiava os seus gestos e decidiu levantar voo, num movimento em máxima aceleração, para bater, afugentar ou destruir o competidor, adversário e ou inimigo. Foi embater violentamente contra o vidro da janela de um carro, que estava estacionado junto à vedação de arame da casa verde, e morreu. Não teve tempo para discernir que o competidor, adversário e ou inimigo, era o reflexo dele próprio no vidro da janela do carro, que, naquele instante, funcionou como um espelho motivador de uma investida kamikaze.

Nota do autor deste Conto: Ofereço meia dúzia de “rebuçados e chocolates” a quem conseguir perceber esta metáfora, inspirada numa história verdadeira, se é que me consegui fazer entender, no exacto momento em que foi decretado o Estado de Calamidade num país africano que está, há muitos anos, no Estado à Rasca.

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